Caminhos de Santiago

Notas de reportagem de uma caminhada pelo interior das terras galegas... Sarria-Santiago de Compostela: 111 quilómetros, Setembro de 2004

08 agosto 2006

O Caminho

“La puerta se abre a todos, enfermos y sanos. No sólo a católicos, sino también a paganos, judios, herejes, ociosos y vanos. Y, por dicirlo brevemente, a buenos y profanos.”

Frase na porta de um abrigo para peregrinos


A madrugada ainda é noite, escura como uma noite sem lua. O céu vestiu-se de tempestade e ameaça desabar a qualquer momento. Num trilho igualmente negro, subindo metodicamente/com passos mecânicos a colina, um grupo de quatro pessoas avança em direcção às nuvens negras e densas. Trazem o corpo coberto por impermeáveis que lhes escondem a identidade, e tremem com a intensidade de cada trovão. Não se conhecem, mas a força da tempestade e a escuridão da noite aproximou-as instintivamente. A tormenta que se anuncia não terá piedade, e quando a chuva desabar, mais não terão à sua volta que as árvores mudas, onde não é aconselhável que se abriguem.

De lanternas em riste, ainda mal começámos a caminhar e não sabemos onde ficará a próxima povoação. Onde de resto, a esta hora, os camponeses dormem ainda e os cafés estão fechados. A chuva precipita-se sobre nós, enfim. O impermeável precário tapa-nos a visão, com o peso da água, doem as feridas nos pés que ficaram por tratar, a mochila sempre pesada demais… é nestes momentos que podemos fraquejar e pensar: “Mas onde tinha eu a cabeça quando decidi meter-me sozinha pelos caminhos de Santiago? As doces colinas da Galiza podem ser belas, mas chove todos os dias e tudo me dói e tudo me pesa. Como poderia deter-me a ver a paisagem?”.

E é aí que, de repente, o corpo se esquece e, como que transportado para outra dimensão, limita-se a seguir mecânico em frente. As dores, o suor e o desconforto, a água da chuva que se entranha por todos os lados, os quilómetros que faltam, deixam de ocupar o espírito. “Não penses. Caminha”. Deve ser o mantra mais repetido, em voz e em pensamento, pelos milhares de pessoas que todos os anos se aventuram nos caminhos de Santiago, andando “à la pata” dezenas ou até centenas de quilómetros para chegar a Compostela.

Chegar à “cidade prometida” pode ser um objectivo cultural, ambiental ou filosófico. Ou turístico. Perfeitamente mundano até, porque é sempre, por definição, uma aventura. Mas há muito que as peregrinações deixaram de ser exclusivo da religião cristã. Tanto mais em Ano Santo, como este Xacobeo 2004, em que se pode encontrar toda a diversidade de peregrinos a pé, de bicicleta e a cavalo. 2004 foi o ano recorde em número de peregrinos. De acordo com os dados oficiais da Oficina do Peregrino em Santiago, 95 por cento das pessoas que caminham até Compostela afirmam ter algum tipo de motivação religiosa. Mesmo que não católica. Ainda assim, é de suspeitar que grande parte dos peregrinos apresente estes motivos para poder obter a Compostelana, o diploma da Igreja que prova que caminharam pelo menos 100 quilómetros até Santiago.

Pode-se partir em grupo, numa aventura partilhada, ou completamente só, aberto à partilha com aqueles que se encontrar pelo caminho. Para aqueles que partem sozinhos, “fazer o caminho” é em geral uma tentativa de se afastarem para pensar um pouco, de parar para respirar, longe do quotidiano, do trabalho, das rotinas de sempre e mesmo da família. Mesmo que não tenha um fundamento religioso, a peregrinação, tanto mais em solitário, é sempre uma experiência espiritual.

Para muitos, é um momento de paragem necessário na hora de tomar uma opção de vida, para poder avaliar o percurso que se fez até aqui e destrinçar o que é realmente importante. O padre John Columb, chileno residente em Londres, foi um desses peregrinos que mudaram de rumo depois de fazer o caminho. Encontrei-o no albergue de Ponferrada, na região de León, a uns 50 km da fronteira galega. Ao ver-me sair de mochila às costas, reparou em mim: “Estás com cara de preocupação”. “Estou com cara de primeiro dia!”, respondi resignada. Avaliou-me o peso da mochila, perguntou como estavam os meus pés, questionou-me sobre a programação das etapas e deu-me alguns conselhos para o Caminho.

Procurar conhecer pessoas. O primeiro não foi difícil de seguir. Difícil é estar sozinho. O Caminho Francês é uma corrente interminável de peregrinos. De todas as nacionalidades, mas sobretudo espanhóis, desde a Galiza às terras da Andaluzia, passando pelo País Basco e pela Catalunha. É nos caminhos de Santiago que Espanha se encontra e se reconhece, apesar de tudo, como uma nação. Era vê-los discutirem, nas merecidas horas de descanso, a actualidade política e social de cada região.

Na estação de autocarros de Ponferrada, pensava encontrar um que me levasse à aldeia de O Cebreiro, a mais de mil metros de altitude, ou até Piedrafrita, a porta de entrada da Galiza. Não encontrei um autocarro, mas em troca conheci a minha primeira companheira de jornada, uma jovem chilena que vive em Madrid e que deveria encontrar-se com os amigos em Cebreiro. Partimos juntas para Sarria, de comboio, seguindo o conselho de uma outra personagem que encontrámos na estação, o guia Félix Martin. Foi quem acompanhou Shirley Maclain e os filhos do Rei de Espanha nas suas peregrinações a Santiago. Foi também quem inspirou a personagem do guia (ver nome) no livro “Diário de um Mago”, de Paulo Coelho. A minha companheira de jornada é cristã, mas protestante. Santiago é apenas uma etapa intermédia, para quem sonha rumar até à Terra Santa de Israel, no próximo ano.

No caminho, os dias e os encontros são assim. Espontâneos e inesperados. E ainda nem começámos a caminhar. Em Sarria, encontramos os albergues todos mais que lotados. Disseram-nos que podíamos dormir no pavilhão da cidade desportiva. As luzes do recinto estão desligadas e deitamo-nos com o pôr-do-Sol. Usamos os balneários e penduramos a roupa nas balizas, para secar. Em seis dias de caminhada, apercebi-me que nesta Galiza húmida e chuvosa o truque de pendurar a roupa na mochila, enquanto se caminha, nem sempre dá resultado… o mais certo é ter de carregar roupa molhada e ficar sem nada que vestir. Nem todos os albergues têm lavadora e secadora, e naqueles em que existe a lista de espera nunca chega para toda a gente.

Metáfora da vida, no caminho há que assumir as dores, a chuva, o desconforto, a possibilidade de não ter onde dormir, os picos de cansaço e desalento. Não é um mero passeio num fim-de-semana de sol. Depois da hesitação da partida, o primeiro dia pode ser de grande cansaço ou de euforia. Quando os pés não estão já em condições de caminhar, cada metro é um suplício e os quilómetros parecem alongar-se. Aliás, é preciso que se diga, como advertência, que na Galiza os quilómetros são maiores. Ou pelo menos parecem… (...)

2 Comments:

At 1:54 da manhã, Blogger Unknown said...

gostei muito

parabens

carla

http://www.arte-e-ponto.blogspot.com

 
At 1:54 da manhã, Blogger Unknown said...

gostei muito

parabens

carla

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