O som dos bordões
Em geral há um pico de desconforto, até que o Caminho nos vai dominando, apagando dúvidas e queixumes. A pouco e pouco adoptam-se as melhores estratégias de “sobrevivência”. Em Ano Santo, para encontrar dormida nos albergues da Junta, o melhor é planear etapas pequenas, com cerca de vinte quilómetros, e chegar antes da uma da tarde às localidades. É a essa hora que as portas se abrem, mas já uma fila imensa de peregrinos se estende ao longo da rua.
Há toda uma rede de negócios instalada em torno das peregrinações, e um dos mais frutuosos é o transporte de mochilas. Enquanto os caminhantes cumprem mais uma etapa, aliviados do peso dos seus pertences pessoais, uma carrinha descarrega as suas malas no albergue mais próximo. E isto pela módica quantia de três euros. As normas dos albergues da Junta dão prioridade aos peregrinos que caminham com a mochila, e os restantes, assim como os ciclistas, só têm acesso se houver vagas.
Na hora da verdade, é impossível controlar, até porque antes do albergue abrir as portas já a famosa carrinha estacionou na mesma rua e os clientes resgataram as suas malas. Se em Setembro os albergues esgotam meia hora depois de abrir as portas, imagine-se em Julho e em Agosto, a altura em que a maioria das pessoas faz o caminho.
Em Palas de Rei, uma localidade a cerca de 65 quilómetros de Santiago, foi construído este Verão um enorme pavilhão, mas apesar de estar concluído desde Julho está fechado, enquanto em frente os peregrinos rotos de cansaço dormem no pavilhão desportivo, onde os treinos de futebol só acabam às onze da noite.
A imagem é surrealista, mas verídica. Numa noite de tempestade, em Setembro, às dez horas, um grupo de jovens da localidade treinava os remates enquanto, espalhados pelo campo de jogo, duas dezenas de peregrinos tentavam dormir. Na pomposa Oficina de Informação, mesmo ali ao lado, a rapariga do atendimento limitava-se a informar que «o albergue fica no centro da povoação», quando sabia que este já não tinha camas disponíveis. Dezenas de pessoas caminharam mais um quilómetro e meio em vão, e tiveram de voltar para trás.
Todo o caminho está impregnado de magia, mas para os habitantes locais os peregrinos de bordão e vieira são apenas um elemento do quotidiano. Há muitos anos que assim é, e para muitos as peregrinações tornaram-se um bom negócio, que se estende desde os vendedores de bordões no caminho aos menus servidos nos cafés. Do lado da junta, o esforço de investimento é grande, mas muitos funcionários estão mal preparados e a informação não abunda. Mesmo em Santiago, onde os peregrinos se queixam da má sinalização e onde não se encontram mais sorrisos do que no resto do caminho.
O truque dos peregrinos de mochila é partir o mais cedo possível, e caminhar pela fresquinha da manhã. Às cinco, o movimento começa. Pé ante pé, arruma-se a mochila, faz-se os curativos e enrola-se as ligaduras nos pés, quando necessário. Um bom truque, apesar de não ser infalível: pacientemente, todas as manhãs, besuntar os pés com vaselina para evitar a formação de bolhas, as célebres “ampollas” que tanto atormentam. “Não deixes que uma bolha te pare!”, avisa o anúncio numa farmácia de Portomarín.
O som rítmico dos bordões começa a ecoar na noite, ainda antes de raiar a madrugada, e avisa da chegada dos peregrinos. Por volta das seis da manhã, descarregamos as mochilas e tomamos um “desayuno” substancial, um café com leche e umas tostadas, num café do caminho.
Essa partida solitária de Portomarín (província de Lugo, cerca de 89 km de Santiago), numa madrugada de tempestade - e depois da última noite de festa popular, em que o sono peregrino foi assaltado pelos batuques dos concertos - é recompensada por um amanhecer delicioso. As árvores emergem das suas silhuetas, os pássaros saem dos abrigos, as colinas desdobram-se numa paisagem fresca que rouba a atenção a cada passo. Quando menos se espera, um enorme corvo atravessa o ar e grasna ironicamente, como se troçasse dos caminhantes teimosos.
Tirar o impermeável da mochila e vesti-lo torna-se um gesto automático, assim como guardar a máquina fotográfica. Chove constantemente mas isso pouco importa. O peregrino navega no caminho selvagem como um marinheiro a quem as maiores tormentas não fazem enjoar. E se se partiu em jejum, saiba-se que não há melhor petisco que as amoras lavadas pelo orvalho. Ali à mão de semear, sem obrigarem sequer a estugar muito o passo. Não há barras energéticas que se lhes comparem.
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