Caminhos de Santiago

Notas de reportagem de uma caminhada pelo interior das terras galegas... Sarria-Santiago de Compostela: 111 quilómetros, Setembro de 2004

08 agosto 2006

A Cidade Prometida

A distância que nos separa da cidade prometida é já insignificante e aproveitamos os momentos que nos restam. «Mais dois dias e quando chegarmos acaba-se tudo», desabafa alguém, entre o alívio e a tristeza. O Monte do Gozo é esse último local magno de encontro, a escassos cinco quilómetros de Compostela. Junto à Capela de São Marcos e do monumento ao peregrino João Paulo II, descansam os cavalos, as bicicletas e os peregrinos. Savina, irmã de uma instituição religiosa de Badajoz que partiu sozinha de Sarria nessa semana, cumpriu as etapas com uma convicção heróica, e sorri vitoriosa para a fotografia de grupo, nos seus mais de 60 anos.

Daí, a descida até Santiago faz-se sem pressas. Entramos na cidade por São Lázaro, a zona onde está instalado o Palácio do Congresso e a sede da Junta da Galiza. As setas amarelas quase desaparecem. Os prédios rodeiam-nos. Cada automóvel, cada pessoa nas ruas, parece demasiado ruidoso e violento. O afã de mais um dia na cidade. Um 11 de Setembro de 2004.

Ao entrar no centro histórico, depois de percorrer uma selva urbana desconhecida, misturamo-nos com a multidão de turistas que enche as ruas, as igrejas e a catedral. Por todo o lado há filas de gente, para assistir à missa, para abraçar a imagem do apóstolo, para pedir a compostelana, o certificado para quem caminhou até Santiago “por motivos religiosos, ainda que numa atitude de busca”. As lojas estão apinhadas de t-shirts, recuerdos vários, entre os quais as vieiras e os bordões. À porta dos restaurantes, meninas sorridentes oferecem-nos a provar docinhos típicos da Galiza.

A cidade que nasceu do sepulcro do apóstolo Santiago não é o fim da caminhada. Tradicionalmente, ela só acabava em Finisterra, considerado na Idade Média como “o fim do mundo conhecido”. Vou até lá de autocarro, duas horas e meia de curvas e contracurvas. Quem diria que são só 60 quilómetros... dois dias de caminhada seriam suficientes. No promontório que se precipita sobre o Atlântico, as cinzas esvoaçam e junto aos vestígios de uma fogueira alguém deixou uma bota carbonizada. Uma pequena placa com o símbolo do luto explica o porquê: é tradição os peregrinos queimarem as roupas quando chegam a Finisterra. O sumo acto de purificação e de retorno. Vimos o mesmo laço negro do luto muitas vezes ao longo dos caminhos, sobre as cores da bandeira de Espanha, com os nomes das vítimas dos atentados do 11 de Março em Madrid.

A civilização volta a impor-se com um baque. Durante o primeiro dia, ainda é comum caminhar pelas ruas da cidade prometida e ouvir o nosso nome. Mas depois cada um regressa às suas casas, de comboio, de autocarro, ou de automóvel. Na Compostela cheia de gente, muitos peregrinos sentem-se maravilhados. Mas muitos se sentem também, pela primeira vez, sozinhos. «Já ninguém se cumprimenta. Os peregrinos mal se distinguem das outras pessoas», comenta Joana, uma portuguesa que partira uma semana antes de Ponferrada.

Percebemos, perante a beleza simétrica da grande catedral, na imensidão agitada da Praça do Obradoiro, que chegar aqui é apenas um pormenor sem o qual a peregrinação nunca teria sido feita. E que a maior beleza é sempre aquela que encontramos pelo caminho, e que cuidadosamente fomos recolhendo na mochila da alma, para o resto dos nossos dias. Porque essa, em vez de pesar, torna mais leve o nosso fardo. Não foram só as ligaduras, a sopa e o pão que partilhámos.