Entrevista com Xosé Barreiro Rivas
Xosé Barreiro Rivas é professor catedrático na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Santiago de Compostela. Publicou, entre outras, as obras “La Función Política de los Caminos de Peregrinación en la Europa Medieval” e “The Construction of Political Space: Symbolic and Cosmological Elements (Jerusalem and Santiago in Western History)”.
Há quem diga que o interesse pelo Caminho de Santiago está a ressurgir nos dias de hoje. Concorda?
É um ressurgimento distinto, porque aquilo que hoje existe é um caminho distinto. Existe o fenómeno da Idade Média, que deu lugar a todo esse conjunto de obras de arte, de monumentos, de infra-estruturas, como portos, etc. que hoje adornam todo o Norte de Espanha.
Não há que ter dificuldade em reconhecer a multiplicidade de motivos daqueles que percorrem o Caminho. O caminho sempre teve muitos motivos. Até no Códice Calixtino, em quase todas as referências históricas que existem sobre o Caminho, nos seus melhores momentos, no século X, XI, se refere que havia pessoas que vinham por motivos religiosos, por penitência, mas também por simples curiosidade, por causa dos seus negócios, porque gostavam de romper com a monotonia da sua vida, com as mulheres e os filhos, e dar um passeio. Vinham mais homens que mulheres. Toda essa multiplicidade de motivos esteve sempre presente.
Como se justifica o surgimento do fenómeno Santiago na Idade Média?
Eu inclusivamente sustento que o fenómeno de Santiago, contado de acordo com o que diz a história das crónicas - um milagre, um apóstolo da capital de Jerusalém que aparece em Santiago, depois de nove séculos da sua decapitação e depois de seis ou sete sem que se falasse dele para nada - não seria possível sem essas outras motivações que de alguma forma ajudaram a construir o fenómeno da existência de uma terra apostólica, que era o que se procurava então. O caminho surge apoiado por redes, por comerciantes, pelo poder civil em geral que constrói hospitais, pontes, e assegura a vigilância do caminho, justamente porque este existia para cumprir um vasto leque de motivações.
A Europa é percorrida por múltiplas rotas de peregrinação…
O caminho de Santiago é o mais importante da Europa medieval, mas não é o único. Há muitos caminhos locais e regionais, e alguns muito importantes na estruturação da Europa, como Roma, e inclusive um caminho simbólico, que tinha sido durante muito tempo importante, que era Jerusalém, mas que logo deixa de ser quando no Período Bizantino se dá a queda do Império do Oriente e quando os árabes tomam uma parte importante da envolvente da Terra Santa.
É então que todas as peregrinações se voltam para Ocidente. Os caminhos nascem, do ponto de vista religioso, da ideia de que visitando o Santo se conhece melhor a sua vida e se segue melhor a sua fé. E aí procura-se o que se chamavam as hierofanias, lugares onde o contexto de alguma maneira nos transmite ou nos diz algo.
Por outro lado, surgem na perspectiva civil quando há uma fragmentação muito grande do espaço civil, quando os territórios do poder estão muito repartidos (e a lei, e a moeda) e se torna impossível percorrê-los. Daí que se dê origem a um caminho que se imponha como uma hierarquia superior, que é religiosa, para que se sobreponha sobre o mapa do espaço fracturado e permita que as gentes, ao percorrer os caminhos, com as suas mercadorias ou a sua curiosidade, tenham mais segurança.
O caminho de peregrinação pode caracterizar-se como um espaço político, quiçá económico?
No fundo, o Caminho é um espaço político. Existia no direito romano um conceito que era o de direito de peregrinação, em que os caminhos tinham um estatuto jurídico independente dos territórios por onde passavam e que permitiam cruzar espaços muito diferentes sem estar sempre condicionado aos caprichos dos poderes locais.
É esta a razão por que estes caminhos de Santiago e da Europa medieval surgem no princípio da Baixa Idade Média, num momento em que há um certo ressurgimento económico e cultural, mas no entanto um momento em que a Europa, ainda muito longe da ideia do Estado, e completamente dominada pelos poderes locais, está profundamente segmentada. O Caminho é a grande auto-estrada do Ocidente da Europa medieval.
O Caminho tem ao mesmo tempo algumas simbologias, que o favorecem muito. Surge quando uma parte da Espanha estava ocupada pelos árabes, e portanto a presença, real ou simbólica, do apóstolo Santiago aqui, mas em todo o caso acreditada pela cristandade medieval, é uma tomada de posição da terra cristã, é fazer uma ligação entre o Norte de Espanha e a cristandade ocidental.
Os árabes estavam naquela época na fronteira, e o Caminho é considerado propriedade cristã. Todos temos algo nosso e fundamental que nesse momento estava a ressurgir, que é a cristandade. O Caminho tem unido a esse feito a expressão de Finisterra. A obra de Cristo era ir até ao fim do mundo e Finisterra era vista na Idade Média como o fim do mundo, a 40 quilómetros daqui. Era de alguma maneira a perfeição do catolicismo, a universalidade. O caminho simboliza exactamente isso.
Em termos pessoais, qual é o significado?
Olhado da perspectiva da pessoa individual, é fundamentalmente uma via de penitência, mas é algo muito distinto na perspectiva colectiva, tanto eclesiástica como civil. À igreja serve para dar essa sensação de perfeição da catolicidade e de domínio do mundo, e servia para estender e reformar a Igreja Romana, num momento em que o culto romano se estendia por toda a Europa.
Ao mesmo tempo trazia infra-estruturas de comunicação de carácter geral que não reconheciam as fronteiras, com independência da fragmentação sistemática da Europa no tempo do feudalismo. O grande caminho de Santiago é um só, na minha opinião: o caminho tradicional que fizeste, que vem do centro da Europa, até ao fim do mundo. É essa a função do caminho de Santiago.
Todas as cidades têm muitos caminhos porque toda a cidade é um cruzamento de caminhos. O importante é um caminho só, que tem símbolos e uma importância objectiva para a Europa, em que surge Santiago a partir de meados do século.
A que se deve este novo interesse nos últimos anos? O número de peregrinos tem aumentado sucessivamente.
Há dois motivos fundamentais. O primeiro é que hoje em dia as pessoas têm muito mais dinheiro e muito mais capacidade de viajar. E portanto fazem muito turismo. Uns vão ver paisagens, outros vão ver animais, outros vão conhecer culturas diferentes e outros ainda fazem aquilo a que chamamos turismo religioso. Digamos que para a promoção é um momento muito bom porque as pessoas vão a todo o lado. Sobretudo à Europa Ocidental deu a febre viajeira. Toda a gente quer ir a algum sítio, e procura uma motivação para fazer essa viagem. Parece que ir apenas à praia ou comer, ou descansar, não é o suficiente.
Ir a Santiago é religar-se a uma via cultural de grande importância e de alguma maneira ligar-se a um processo histórico muito atractivo. Isso em si mesmo tem força porque o caminho mantém uma parte muito importante da sua infra-estrutura, de tal maneira que em qualquer troço do caminho que se percorra se encontram obras de arte, paisagens maravilhosas, ligando toda uma visão histórica do país e da sua formação.
A Igreja não quis perder a ideia de um caminho que nasce muito vinculado a um sentimento religioso. Vão invocar outra vez a peregrinação como se fosse um fenómeno religioso distinto. Digamos que tudo isso ajuda a que o caminho ressurja, se bem que o peregrino de hoje não tenha nada que ver com o peregrino de então, nem sequer o peregrino religioso, é distinto.
É certo que o caminho de Santiago, ao longo da história, aparece e desaparece constantemente, na Idade Média tem o seu auge, logo entra numa fase de decadência que se agudiza muitíssimo com a Reforma, para ter de novo um ressurgimento no século XVII e no XVIII, voltar a cair no século XIX, e voltar a aparecer no século XX. Há momentos especialmente propícios para que as pessoas voltem ao caminho. Desde a guerra espanhola que o caminho de Santiago tem uma relativa importância nos anos Santos.
E há dois factores que agora estão presentes: primeiro, o interesse que hoje se tem pelas culturas passadas e pelas coisas antigas. A primeira coisa a ressurgir no século XX é a arte, quando se começa a restaurar os significados religiosos e quando se começa a utilizá-los como objecto turístico. A promoção turística mais forte faz-se depois da autonomia da Galiza, a partir de 1980, e sobretudo depois de 1990. Creio que essa característica dá uma certa novidade ao processo mas não é um processo inédito. Sempre foi assim, e sempre houve motivos diversos, próprios de cada época.
E quais são os factores que actualmente favorecem este ressurgimento?
Hoje dão-se circunstâncias parecidas às que se davam quando o caminho foi criado. A Europa está em busca de unidade. Quando os europeus estão à procura de unidade - e a Europa não é um continente homogéneo, se não em cultura e em fé, é muito diversa em línguas, em história e economia - há que buscar no Caminho um reencontro, e tudo serve, desde a Liga de Futebol ao Caminho de Santiago.
Parecemos ter actualmente uma grande febre de acontecimentos europeus, de coisas que sejam de todos, porque nos dá a sensação de que voltamos a pertencer a um mesmo mundo. Interessante para os europeus é verem-se reflectidos numa ideia comum. E isso reproduz quase exactamente um dos motivos iniciais do surgimento do Caminho.
Não foi por acaso que o Conselho da Europa o declarou como a primeira rota de interesse cultural, como sempre historicamente é uma rota comum onde se encontram todos os europeus. Uma das coisas que o Códice Calixtino conta é que se ouvem todas as línguas no caminho. Chegava-se à catedral e falavam-se todas as línguas, nos confessionários as pessoas confessavam-se em inglês, em francês, em alemão… isso é um pouco o que agora está a acontecer.
Eu dou menos importância ao fenómeno religioso, não creio que suscite muita curiosidade no momento. É um fenómeno essencialmente turístico, mas é evidente que toda a gente que vem a Santiago vem à catedral e muitos vão assistir às missas e ver o Botafumeiro, mas eu creio que é uma curiosidade. As pessoas querem conhecer o Caminho de Santiago e a história dos seus castelos, das suas catedrais, das suas pontes, desde Roncesvalles, passa-se por montes elevadíssimos, quase com neve eterna. Se se for no Verão é uma coisa, no Inverno é outra, todo esse atractivo que é maravilhoso.
Mas não creio que a maior parte das pessoas se sinta peregrina. Hoje a maioria das pessoas vem de automóvel, de avião, de comboio, mas não vem caminhando. Esses que caminham são uma mínima fatia de toda a gente.
E quais são os motivos dos que caminham, que fazem centenas de quilómetros a pé?
Geralmente os que vêm andando têm motivos espirituais. Muitas vezes confessam que estão longe de ter uma motivação dentro dos parâmetros da Igreja Católica, mas em geral os que caminham sentem que estão a passar por uma crise de inquietude, de perguntas. Querem procurar respostas e ter tempo para meditar. Em todo o caso, em termos gerais, as pessoas ligam-se a um sentimento religioso de qualquer tipo, sobretudo os que fazem o caminho completo, claro, porque há muitos que fazem apenas o último troço.
Há quem comece de Roncesvalles, de Saint Port, e tenha que estar um mês a caminhar, o que será uma coisa distinta. A mim produz-me uma admiração enorme, e até uma certa emoção, quando ao viajar de automóvel pelo Norte de Espanha cruzo o Caminho e constato que continuamente há cada vez mais gente a caminhar até Santiago. Claro, uns milhares fazem o caminho todo o ano, e os que vêm nesta altura são centenas de milhares ou milhões, viajam fundamentalmente pelos meios modernos e têm uma mistura muito clara entre turismo e religião.
Há pessoas que se sentem deslocadas ao chegar finalmente à cidade. É como se viessem mais sensíveis do Caminho e a vida urbana já fosse demasiado violenta para elas.
Seria necessário fazer um estudo do que dizem as pessoas, mas para mim isso tem algum sentido, porque o que faz o Caminho sai um pouco da vida moderna e da vida ordinária, com umas botas e uma mochila. O caminho hoje em dia desvia-se das grandes estradas, das grandes vias, e quando o peregrino chega a Santiago vai encontrar-se outra vez com a civilização.
O que vem para conhecer a catedral e a tumba do apóstolo ficará satisfeito também por isso. O que venha porque teve uma experiência mais ou menos curiosa, mas não crê que o apóstolo esteja aqui sepultado ou que não tenha fé cristã, evidentemente saiu do silêncio e voltou à civilização. E Santiago é uma cidade que tem uma vida bastante intensa.
Isso acontece em todo o tipo de situações, como quando passamos uns dias numa ilha deserta, ou quando participamos numa celebração intensa, como a Semana Santa, em que quando se sai do centro histórico Sevilha passa a ser outra vez uma cidade rápida e ruidosa. Quem fez o caminho passou por montes solitários, esteve em silêncio, e isso agradou-lhe, e a sensação que tem quando chega aqui é que o paraíso acabou.
O fenómeno é muito massivo. Vai-se à missa do peregrino ver o Botafumeiro e a catedral está a abarrotar de pessoas, e é como se tudo estivesse demasiado estereotipado.
É um fenómeno turístico de massas, que contrasta com a solidão do peregrino?
Ainda que não haja tanta gente como diz a propaganda oficial, em todo o caso vem muitíssima gente, o que já obriga a um certo nível de organização. Ainda que haja que manter algumas tradições. Em todo o caso, a catedral é um recinto aberto. O Códice Calixtino diz que “estava aberta dia e noite, e que os peregrinos entravam e saíam constantemente, e que a tomavam por sua e chegavam a dormir lá dentro”.
Não é como agora que tudo tem horários, que se abrem e fecham as portas, e há lojas e há homens estátua a rodear a catedral. Suponha que a Idade Média teria um pouco de tudo isso. Há aqui um bairro a que chamam os Concheiros porque os que lá habitavam vendiam conchas aos peregrinos. Já nesse tempo as pessoas compravam lembranças.
Mas era um tempo em que quase todos os europeus eram crentes, ou pelo menos o eram com outra intensidade. Quando vou a Roma, penso muitas coisas, mas em nenhum caso tenho a sensação de que em Roma está a porta do Céu.
Agora temos outra cultura e mesmo outra maneira de viver as nossas crenças. O mundo mudou muito em dez séculos e não podemos simplesmente dizer: “agora vou abandonar o meu mundo e partir para um outro”. Os peregrinos que viajam pelo caminho cansados e famintos trazem dinheiro na carteira e um telemóvel. E um peregrino com dinheiro e um telemóvel não é o mesmo que um peregrino medieval.
Os peregrinos medievais não sabiam o que era Santiago. Os que vêm agora viram fotografias da cidade. Se têm algum problema durante o caminho podem chamar uma ambulância que os leva para o hospital. As coisas mudaram radicalmente e é impossível voltar atrás. No entanto, não se devia procurar a imagem vulgarizante do caminho, mas sim os símbolos que podem permanecer dentro da cultura actual.
Porque, de contrário, é como um teatro. Pode-se vestir um traje de peregrino, pôr um chapéu, uma vieira e uma cabaça com água e imitar o peregrino medieval. Mas o caminho não é isso. Há bares, cabines telefónicas, gente que passa de moto… já não há ninguém que regresse caminhando. Mesmo o católico mais crente não vem da mesma maneira, e apesar disso o fenómeno continua a funcionar.
Não estou de acordo com a folclorização que se está a fazer do fenómeno jacobeu. Eu preferia que fosse um fenómeno mais minoritário e mais puro. Como se fosse uma Olimpíada ou uma feira de mostras. Não faz diferença ser um milhão ou dois milhões, desde que as pessoas tenham encontrado algum motivo, a partir da sua cultura, para vir. Guardem-se as promoções turísticas para as praias e a comida.
Os dados da Oficina do Peregrino apontam para uma larga maioria de pessoas com motivações religiosas. Mas empiricamente o que parece é que há uma crescente laicização…
Se nos albergues e nos bares perguntares aos peregrinos quem são, de onde são e por que vêm, vais dar-te conta de que cada cidadão é um mundo diferente. Dizer que neste momento predomina o sentido religioso seria exagerado. Dizer que os que vêm caminhando é porque estão num momento de certa preocupação espiritual eu creio que é evidente. O número de peregrinos a pé tem vindo a aumentar, mas também tem havido um forte investimento em infra-estruturas e muita publicidade ao Caminho. Os anos santos aumentam a procura, porque há um cruzamento entre a promoção e as motivações que possas ter para responder a essa promoção. Pensa-se “porque não hei-de eu também experimentar e ver o que é isso?”. Acontece que uns estão preparados e outros não.
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